Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras

analiticamente
3 min readJan 29, 2021

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Ano passado, ano do centenário da Clarice, eu descobri esse livrinho da autora. Escrito sob encomenda para a fábrica de brinquedos Estrela*, o livro contém doze lendas do Brasil contadas ao estilo da escritora e com o intuito de que cada uma fizesse referência a cada mês do ano. Por ter uma linguagem acessível de um livro infantil, achei que seria um jeito interessante de marcar o início dessa vontade de entrar mais em contato com materiais, como lendas, contos e mitos brasileiros.

Pelo fato da psicologia analítica utilizar bastante o método comparativo nas interpretações de sonhos, contos de fadas e nos próprios textos das obras junguianas, achei que esse livro poderia ir por essa via — de serem paralelos culturais — de forma a complementar as indicações habituais dos livros indicados por aqui.

Então a minha ideia é que, a cada fim de mês, eu venha aqui colocar a história correspondente. Dessa forma eu me incentivo a estudar mais as coisas do Brasil e, quem sabe, incentivo outras pessoas também. A princípio, eu não tenho intenção de fazer uma interpretação das lendas, o intuito é de somente apresentar esse material.

Enfim, espero que gostem!

Janeiro

Como nasceram as estrelas

Pois é, todo mundo pensa que sempre houve estrelas pisca-pisca. Mas é erro. Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro — e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas.

Era uma vez, no mês de janeiro, muitos índios. E ativos: caçavam, pescavam, guerreavam. Mas nas tabas não faziam coisa alguma: deitavam-se nas redes e dormiam roncando. E a comida? Só as mulheres cuidavam do preparo dela para terem todos o que comer.

Uma vez elas notaram que faltava milho no cesto para moer. Que fizeram as valentes mulheres? O seguinte: sem medo enfurnaram-se nas matas, sob um gostoso sol amarelo. As árvores rebrilhavam verdes e embaixo delas havia sombra e água fresca. Quando saíam de debaixo das copas encontravam o calor, bebiam no reino das águas dos riachos buliçosos. Mas sempre procurando milho porque a fome era daquelas que as faziam comer folhas de árvores. Mas só encontravam espigazinhas murchas e sem graça.

— Vamos voltar e trazer conosco uns curumins. (Assim chamavam os índios as crianças.) Curumim dá sorte.

E deu mesmo. Os garotos pareciam adivinhar as coisas: foram retinho em frente e numa clareira da floresta — eis um milharal viçoso crescendo alto. As índias maravilhadas disseram: toca a colher tanta espiga. Mas os garotinhos também colheram muitas e fugiram das mães voltando à taba e pedindo à avó que lhes fizesse um bolo de milho. A avó assim fez e os curumins se encheram de bolo que logo se acabou. Só então tiveram medo das mães que reclamariam por eles comerem tanto. Podiam esconder numa caverna a avó e o papagaio porque os dois contariam tudo. Mas — se as mães dessem falta da avó e do papagaio tagarela? Aí então chamaram os colibris para que amarrassem um cipó no topo do céu. Quando as índias voltaram ficaram assustadas vendo os filhos subindo pelo ar. Resolveram, essas mães nervosas, subir atrás dos meninos e cortar o cipó debaixo deles.

Aconteceu uma coisa que só acontece quando a gente acredita: as mães caíram no chão transformando-se em onças. Quanto aos curumins, como já não podiam voltar para a terra, ficaram no céu até hoje, transformados em gordas estrelas brilhantes.

Mas, quanto a mi, tenho a lhes dizer que as estrelas são mais do que curumins. Estrelas são os olhos de Deus vigiando para que corra tudo bem. Para sempre. E, como se sabe, “sempre” não acaba nunca.” (p.9–10)

Fontes:

Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, Clarice Lispector, Editora Rocco, 2011;

Instituto Moreira Salles: https://site.claricelispector.ims.com.br/livro/como-nasceram-as-estrelas/

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