Sonhos (夢-yume), Akira Kurosawa

analiticamente
4 min readOct 20, 2020

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Lançado em 1990 — “Sonhos” (夢- Yume) — filme de Akira Kurosawa, traz oito curtas-metragens, representando sonhos do próprio cineasta. Contando com uma produção estadunidense, esse é o filme que diverge da tradicional estética do cinema japonês e pessoal do diretor, sendo considerado sua obra “mais ocidental”. Entretanto, com a exceção do sonho-curta “Corvos” em que ele busca Van Gogh, podemos mergulhar em elementos da cultura da qual ele se inseria, como o folclore, a relação do ser humano com a natureza, a história e sociedade japonesa.

Cena do sonho “Corvos”

Jung acreditava que o sonho era a perfeita expressão de si mesmo e, que para além de aspectos pessoais, eles poderiam trazer elementos arquetípicos. Assim, nesse lugar, estariam os grandes sonhos, onde elementos que estão para além da vida pessoal aparecem. Para tirar o significado ou entender a mensagem dos sonhos, o autor utilizava-se do método de amplificação, abandonando, assim, a abordagem da livre associação de Freud para os sonhos. A amplificação conta diretamente com a participação do sonhador, que, a partir de suas associações com as imagens oníricas, poderá chegar a uma síntese que lhe afete de fato. Isso será o maior sinalizador de que a interpretação funcionou.

Mas, para além de interpretações e diálogos conceituais, o filme nos convoca a pensar sobre questões humanas fundamentais. Como uma bomba atômica, por exemplo, vai aparecer nos sonhos de um povo que foi diretamente marcado por isso? Ou quais são os efeitos que uma vida envolvida no desenvolvimento tecnocientífico nos proporciona? Como nos relacionamos com a natureza? Qual o lugar da morte e da velhice na nossa sociedade? Essas são as reflexões que me chegam dos dois sonhos que me chamam mais atenção, “Monte Fuji em chamas” e “O vilarejo dos moinhos”.

No primeiro, a questão do avanço nuclear e suas consequências em relação à radioatividade aparecem. O Monte Fuji ao entrar em erupção causa pânico nas pessoas. Ao aparecerem gases coloridos, uma personagem denuncia a estupidez do ser humano, que a partir do perigo desses, criam formas de apenas identificar aquilo que vai lhe matar.

“Aquela vermelha é plutônio 239. Um décimo milionésimo de grama causa câncer. A amarela é o estrôncio 90. Entra em você e causa leucemia. A roxa é césio 137. Afeta a reprodução, produz mutações, faz aparecer monstruosidades. A estupidez do homem é inacreditável. A radioatividade é invisível. Por causa do perigo, eles a coloriram. Mas isso só permite que você saiba qual tipo que vai matá-lo.” (trecho da fala da personagem no sonho “Monte Fuji em chamas”)

Cena do sonho “Monte Fuji em Chamas”

Já em “O vilarejo dos moinhos”, Kurosawa aparece em seu próprio sonho adentrando em uma espécie de aldeia. No início, depara-se com crianças colocando flores em uma pedra. Aquele ato desperta a sua atenção, mas é só ao encontrar um idoso desse lugar, que ele entende o que aquelas crianças estavam fazendo — ritualizando a morte de um andarilho que ali faleceu sem saber desse fato.

“As pessoas se esqueceram que elas são parte da natureza também”, cena do sonho “O vilarejo dos moinhos”

Em um diálogo belíssimo entre Kurosawa e esse personagem do tipo “velho sábio”, podemos refletir sobre a velhice, a forma que vivemos e sentir o choque da diferença cultural em relação a morte. Choque este, que o Kurosawa onírico parece também sentir, já que estamos falando de um indivíduo que estava em contato com um mundo globalizado e, portanto, que partilhou da evitação desse assunto em alguma escala.

A aparição de Kurosawa em algum de seus sonhos é um aspecto bem interessante e, percebendo a ordem deles e sua organização em série, podemos inferir que ele tinha alguma intenção em ir apresentando progressivamente imagens “impessoais” até chegar em aspectos mais pessoais onde sua figura começava a aparecer e protagonizar.

“Só uma série de sonhos poderá dar idéia dos processos aí em curso, de avanços, recuos, transformações, integrações. Um sonho único será uma palavra, ou talvez uma frase, de um texto desconhecido. Será insuficiente para a decifração do texto inteiro.” (Jung-Vida e Obra, Nise da Silveira, p.105)

Cena do sonho “Um raio de sol através da chuva”

Akira Kurosawa deixou para nós uma porta aberta para uma representação mais direta, no mundo do cinema, das imagens do inconsciente. E apesar desse pequeno recorte do filme com entrelaçamentos sob a perspectiva junguiana, acrescento que são possíveis várias perspectivas acerca dessa obra cinematográfica, que traz um material muito rico e muito vivo tanto para quem estuda psicologia analítica, como também para as pessoas que se indagam sobre seus próprios sonhos e que possuem interesse pela temática. Assim deixo aqui a minha recomendação, espero que gostem.

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